domingo, 19 de junho de 2011

No outro dia, quando abri os olhos,

minha cabeça doía tanto que era como se uma britadeira furasse cada centímetro do meu cérebro. Eu sentia tudo ao meu redor rodar levemente, e minha garganta estava tão seca que era como se eu não bebesse nada há semanas – o que eu sabia muito bem que não era o caso.
            Eu estava de ressaca. Claro.
            Meu quarto estava completamente escuro, mas já devia passar do meio-dia – tenho que agradecer minha mãe por comprar aquelas cortinas com black-out – o que não era nada bom, pois eu tinha combinado com um amigo de encontrar no shopping para almoçar. Me ergui lentamente da cama, sentindo o nauseante cheiro de álcool, mel e queimado que invadia meu quarto quase me fazer vomitar. O álcool eu entendia, mas que cheiro de mel era aquele...?
            Enjoada demais para entender, eu tapei o nariz e com os maiores e mais escuros óculos que eu consegui encontrar, saí do meu quarto e me arrastei até a cozinha.
            Comida. A única coisa que curava minhas ressacas era muita, muita, muita comida. Tentando não gritar de dor cada vez que um raio de sol atingia meu rosto, eu andei como um zumbi até a geladeira, e estava a centímetros de abrir a porta quando me lembrei: eu ainda não tinha feito compras.
            Merda. Não havia nada para comer em casa, por isso eu havia combinado de comer fora com o Dan.
            - Muito bem, não entre... em pânico. – minha voz estava tão rouca que eu parecia um cara falando. Bebi um enorme copo de água, mas sabia que aquilo não seria o suficiente. Eu precisava de comida. Mas para ter comida, eu precisava sair; e para sair, eu precisava de curar aquela ressaca. O que me trazia de volta a comida.
            Fiquei algum tempo encarando a geladeira como uma retardada, num desespero mudo e inquietante – e estava a ponto de tentar ver se havia algo para comer debaixo da minha cama (sei que isso é nojento), onde, aliás, você podia encontrar até mesmo uma civilização perdida – quando a porta se abriu de repente. Assustada, mais pela possibilidade de serem meus pais do que a de ser um ladrão, devo admitir, fiquei completamente aliviada quando vi minha melhor amiga de todos os tempos entrando na cozinha.
            Porque, em suas mãos, em duas grandes sacolas, havia um maravilhoso milagre:
            - Comida. – disse, sem pensar.
            - Bom dia para você também... zumbi. – disse Lena, ao ver meu rosto. Eu não disse uma palavra, apenas peguei as sacolas, coloquei-as no balcão, e comecei a tirar tudo lá de dentro o mais rápido que minha ressaca permitia.
            Não era uma cena bonita, acredite. Quando eu estou de ressaca, a única coisa que consigo ver, pensar e interagir, é com comida. Nada mais importa, e continua assim até eu ter comido tanto que simplesmente nada desce mais – ah, o que sim, ajuda muito na balança.
            Graças a forças superiores, eu e Lena já enfrentamos ressacas o suficiente para uma saber as manias da outra – a de Lena, que eu acho muito mais bizarra que a minha, aliás, era levantar bem cedo e correr até as pernas tremerem. O que permitia que ela saísse pro mundo e comprasse comida para mim.
            Entre um pedaço gorduroso de rosca e uma golada de suco, eu disse:
            - Obrigada. Quase entrei em pânico aqui, quando vi a geladeira vazia.
            - Haha. Como se eu não soubesse que você se transforma num pedreiro bruta-montes sempre que bebe demais.
            Eu poderia responder, mas estava mastigando.
            Lena soltou os cabelos e começou a abrir as janelas, cantarolando uma irritante música pop. Outra mania de Lena, essa bem mais insuportável, era a de se recuperar de ressacas com uma velocidade recorde. Estava claro que ela não sentia mais nenhuma gota de álcool correndo pelo seu corpo.
            E eu ainda sentia a vodka chacoalhando em minhas veias.
            - Escuta – dizia Lena, do meu quarto – você me explica esse cheiro de mel e coisa queimada aqui dentro?
            Eu engoli um pão de queijo, e respondi: - Eu esperava que você soubesse. Não tenho a mínima idéia.
            O que eu e Lena fizemos ontem à noite? A única coisa que me lembrava era de ver o idiota do meu ex-ficante se agarrando com aquela garota, e depois, de beber todas num bar muito sujo.
            - Eu também não. Nossa, odeio quando isso acontece. – eu ouvia Lena abrindo as minhas cortinas e depois a janela. – O que quer que seja, espero que não esteja aqu...
            Silêncio.
            - Lena? – falei, mastigando um pedaço de broa.
            - Ni... Nina...
            - O que houve? – peguei um pacote de biscoitos de chocolate e andei até meu quarto, desejando que o que quer que fosse, não envolvesse drogas ou um garoto desconhecido, ou drogas e um garoto desconhecido. Que merda foi que fizemos ontem?!
            Entrei no meu quarto, agora completamente iluminado, e parei na porta.
            No chão, em cima do meu tapete cor de rosa, havia uma pequena vasilha cheia de algum líquido esquisito, que ainda soltava uma leve fumaça e que tinha algo completamente queimado dentro. Eu e Lena trocamos olhares.
            - O que... é isso? – disse.
            Lena só balançou a cabeça.
            Andei lentamente até o objeto, temendo que a qualquer hora algo se mexesse ou explodisse.
À medida que ia andando, tentava lembrar o que aquilo significava, que coisa bizarra era aquela no meu quarto, mas eu não fazia idéia.
            Maldita vodka.
            - Nina... Nina, cuidado.
            Agachei em frente à vasilha e a observei com mais atenção. A coisa carbonizada estava mergulhada num líquido viscoso e meio transparente, que tinha várias pétalas flutuando dentro. Inclinando-me ainda mais, consegui identificar o que parecia ser duas pequenas asas de pano, e pezinhos bem pequenos, encolhidos ainda mais pelo fogo. Parecia uma macumba muito bizarra.
            - Será que foi a gente? – disse Lena, com medo.
            - Claro que foi a gente, né Lena. Quem mais poderia ser?
            - Não sei... – ela falou, sem querer imaginar quem ou o quê poderia ter feito aquilo.
            Eu estiquei a mão para encostar naquela forma não identificável de pano quando um grito me impediu.
            - Você tá doida Nina?! Não encoste nisso!
            - Aiii minha cabeça! Você tá doida?! Eu ainda estou de ressaca.
            Enquanto minha cabeça vibrava de dor, eu me levantei e peguei com cuidado a coisa queimada, ignorando os protestos medrosos de Lena. Ergui o objeto a altura dos olhos e tentei adivinhar o que era.
            - Alguma idéia?
            - Não mesmo. – disse Lena, meio emburrada. – Acho que devemos jogar esse treco fora.
            - Ah é? E o quê, simplesmente esquecer que esse negócio veio parar no meu quarto?
            - Quem se importa? Deve ter sido só uma bobagem de duas bêbadas.
            - Não sei não...
            Percebi que depois das asinhas, havia algo como uma cabeça, com o que deveria ter sido um cabelo enrolado e... o que era aquilo na outra mão...?
            Uma flecha, em forma de um... coração, preto de fuligem.
            - Isso tá parecendo o...
            Na mesma hora, um daqueles carros irritantes de supermercado passou na rua, gritando nos altos falantes: Não perca! Super promoção do dia dos namorados! Tudo com até 30% de desconto!!
            Lena me encarou. Seus olhos estavam arregalados.
            - Dia dos namorados? – dissemos juntas.
            Então tudo voltou: o letreiro, a idéia maluca, o mel, as flores, o boneco roubado do quarto da minha mãe, o feitiço, o...
            - Cupido. – eu disse, olhando para o pano queimado. – Esse era o Cupido.
            Minha cabeça começou a doer ainda mais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário