segunda-feira, 27 de junho de 2011

Munida com meus óculos escuros tamanho gigante,

minha roupa pós-ressaca (calças folgadonas e moletom da Gap) e dois comprimidos pra dor de cabeça, eu andava pelo Pátio Savassi tentando evitar cada reflexo que tremulava nas vitrines, me perguntando por que afinal eu havia concordado em ir almoçar com o Dan.
                Eu nem estava com tanta fome assim – tudo bem eu estava com um pouco de fome.
                Tá bom, tá bom, minha barriga roncava tão alto que algumas pessoas olhavam para mim assustadas. Satisfeitos agora?
                Mas enfim. Enquanto eu fazia um enorme esforço para não dar meia volta e ir para casa – devo admitir que só não o fiz por causa do almoço (eu disse que como muito quando tô de ressaca) – fui pensando na melhor maneira que eu poderia contar tudo para o Dan sem ele tentar me internar ou simplesmente me ignorar completamente.
                Conhecendo ele, assim que acabasse de ouvir minha história ele soltaria uma sonora gargalhada e faria algum comentário maldoso a respeito de Lena e eu termos esquecido o dia dos namorados, e do feitiço vir de uma mulher chamada Madame Dite.
                Aliás, conhecendo meu amigo, ele daria a risada e faria o comentário maldoso no segundo em que visse o que eu estava vestindo – o que não facilitaria em nada a tarefa de contar os eventos de ontem para ele.
                Ah, vocês estão se perguntando quem afinal é esse tal de Dan? Ok, deixa eu fazer um parêntesis aqui.
                Vamos ver... tá bom, imaginem um gringo, com olhos verdes escuros, a pele lisa como de um bebê e um cabelo perfeito, que não é nem loiro nem castanho. Imaginaram? Ok, agora pensem nesse mesmo cara, só que sendo um modelo que já fez campanhas para tipo, Calvin Klein – e de cueca –, que já ganhou um milhão de troféus em tipo um milhão de esportes, e que ainda por cima nunca tirou uma nota abaixo da média nenhuma vez na vida.
                Ah, e imaginem ele fazendo a ponta como vampiro num filme nada famoso e nada idolatrado por milhares de garotinhas histéricas em todo mundo, e que por acaso se chama Crepúsculo...
                Imaginaram? Ótimo.
                Bem, esse é Daniel Emmerson, ou Em, como todo mundo o chama, ou Dan, como só eu o chamo. Ele é, bem, meu melhor amigo, ou tanto quanto um cara pode ser melhor amigo de uma garota. Tudo bem que o Dan não é exatamente alguém que podemos chamar de “cara” – apesar de ser como um na maioria das coisas.
                Por quê? Bem... digamos que atualmente ele anda tendo um relacionamento bem intenso com um certo cara... e que com relacionamento eu queira dizer namoro. E que com cara eu queira falar sobre o cantor/ídolo teen absoluto que anda na cabeça de ainda mais milhares de garotinhas do mundo inteiro e que apenas dois meses atrás revelou gostar de meninos, sendo uma das fofocas mais bombásticas de anos.
                Ou resumindo: Dan é gay. Ou melhor, ele é bi. Mas como anda namorando mais homens do que mulheres ultimamente, vamos dizer que ele é gay, para simplificar.
                Ainda assim é esquisito o chamar de gay, porque ele é tão... homem na maioria das coisas. Quer dizer, o quarto dele parece um chiqueiro, ele cospe no chão e arrota bem na nossa cara... ele odeia qualquer filme de romance é viciado em futebol e fala palavrão a cada dois segundos – ah, eu irei dar uma cortada quando ele falar uns muito cabeludos, tá bom? E enfim. Ele não é aquele estereótipo que as pessoas fazem de meninos gays, entende?
                O que me faz pensar sempre em como tenho orgulho dele. Se Dan é alguma coisa, é um exemplo sobre como não podemos julgar as pessoas apenas por parte de algo que elas são.
                Foi com esse pensamento tão doce a respeito de Dan que eu o avistei, sentado num dos restaurantes do Pátio, usando um óculos aviador e parecendo acabar de sair de uma campainha de roupas carésimas – ah, e ele só usava uma blusa branca e uma calça jeans.
                No momento em que me viu ele disse:
                - Ok, que tipo de roupa é essa? – e soltou uma risada malévola.
                Sabia.

domingo, 19 de junho de 2011

No outro dia, quando abri os olhos,

minha cabeça doía tanto que era como se uma britadeira furasse cada centímetro do meu cérebro. Eu sentia tudo ao meu redor rodar levemente, e minha garganta estava tão seca que era como se eu não bebesse nada há semanas – o que eu sabia muito bem que não era o caso.
            Eu estava de ressaca. Claro.
            Meu quarto estava completamente escuro, mas já devia passar do meio-dia – tenho que agradecer minha mãe por comprar aquelas cortinas com black-out – o que não era nada bom, pois eu tinha combinado com um amigo de encontrar no shopping para almoçar. Me ergui lentamente da cama, sentindo o nauseante cheiro de álcool, mel e queimado que invadia meu quarto quase me fazer vomitar. O álcool eu entendia, mas que cheiro de mel era aquele...?
            Enjoada demais para entender, eu tapei o nariz e com os maiores e mais escuros óculos que eu consegui encontrar, saí do meu quarto e me arrastei até a cozinha.
            Comida. A única coisa que curava minhas ressacas era muita, muita, muita comida. Tentando não gritar de dor cada vez que um raio de sol atingia meu rosto, eu andei como um zumbi até a geladeira, e estava a centímetros de abrir a porta quando me lembrei: eu ainda não tinha feito compras.
            Merda. Não havia nada para comer em casa, por isso eu havia combinado de comer fora com o Dan.
            - Muito bem, não entre... em pânico. – minha voz estava tão rouca que eu parecia um cara falando. Bebi um enorme copo de água, mas sabia que aquilo não seria o suficiente. Eu precisava de comida. Mas para ter comida, eu precisava sair; e para sair, eu precisava de curar aquela ressaca. O que me trazia de volta a comida.
            Fiquei algum tempo encarando a geladeira como uma retardada, num desespero mudo e inquietante – e estava a ponto de tentar ver se havia algo para comer debaixo da minha cama (sei que isso é nojento), onde, aliás, você podia encontrar até mesmo uma civilização perdida – quando a porta se abriu de repente. Assustada, mais pela possibilidade de serem meus pais do que a de ser um ladrão, devo admitir, fiquei completamente aliviada quando vi minha melhor amiga de todos os tempos entrando na cozinha.
            Porque, em suas mãos, em duas grandes sacolas, havia um maravilhoso milagre:
            - Comida. – disse, sem pensar.
            - Bom dia para você também... zumbi. – disse Lena, ao ver meu rosto. Eu não disse uma palavra, apenas peguei as sacolas, coloquei-as no balcão, e comecei a tirar tudo lá de dentro o mais rápido que minha ressaca permitia.
            Não era uma cena bonita, acredite. Quando eu estou de ressaca, a única coisa que consigo ver, pensar e interagir, é com comida. Nada mais importa, e continua assim até eu ter comido tanto que simplesmente nada desce mais – ah, o que sim, ajuda muito na balança.
            Graças a forças superiores, eu e Lena já enfrentamos ressacas o suficiente para uma saber as manias da outra – a de Lena, que eu acho muito mais bizarra que a minha, aliás, era levantar bem cedo e correr até as pernas tremerem. O que permitia que ela saísse pro mundo e comprasse comida para mim.
            Entre um pedaço gorduroso de rosca e uma golada de suco, eu disse:
            - Obrigada. Quase entrei em pânico aqui, quando vi a geladeira vazia.
            - Haha. Como se eu não soubesse que você se transforma num pedreiro bruta-montes sempre que bebe demais.
            Eu poderia responder, mas estava mastigando.
            Lena soltou os cabelos e começou a abrir as janelas, cantarolando uma irritante música pop. Outra mania de Lena, essa bem mais insuportável, era a de se recuperar de ressacas com uma velocidade recorde. Estava claro que ela não sentia mais nenhuma gota de álcool correndo pelo seu corpo.
            E eu ainda sentia a vodka chacoalhando em minhas veias.
            - Escuta – dizia Lena, do meu quarto – você me explica esse cheiro de mel e coisa queimada aqui dentro?
            Eu engoli um pão de queijo, e respondi: - Eu esperava que você soubesse. Não tenho a mínima idéia.
            O que eu e Lena fizemos ontem à noite? A única coisa que me lembrava era de ver o idiota do meu ex-ficante se agarrando com aquela garota, e depois, de beber todas num bar muito sujo.
            - Eu também não. Nossa, odeio quando isso acontece. – eu ouvia Lena abrindo as minhas cortinas e depois a janela. – O que quer que seja, espero que não esteja aqu...
            Silêncio.
            - Lena? – falei, mastigando um pedaço de broa.
            - Ni... Nina...
            - O que houve? – peguei um pacote de biscoitos de chocolate e andei até meu quarto, desejando que o que quer que fosse, não envolvesse drogas ou um garoto desconhecido, ou drogas e um garoto desconhecido. Que merda foi que fizemos ontem?!
            Entrei no meu quarto, agora completamente iluminado, e parei na porta.
            No chão, em cima do meu tapete cor de rosa, havia uma pequena vasilha cheia de algum líquido esquisito, que ainda soltava uma leve fumaça e que tinha algo completamente queimado dentro. Eu e Lena trocamos olhares.
            - O que... é isso? – disse.
            Lena só balançou a cabeça.
            Andei lentamente até o objeto, temendo que a qualquer hora algo se mexesse ou explodisse.
À medida que ia andando, tentava lembrar o que aquilo significava, que coisa bizarra era aquela no meu quarto, mas eu não fazia idéia.
            Maldita vodka.
            - Nina... Nina, cuidado.
            Agachei em frente à vasilha e a observei com mais atenção. A coisa carbonizada estava mergulhada num líquido viscoso e meio transparente, que tinha várias pétalas flutuando dentro. Inclinando-me ainda mais, consegui identificar o que parecia ser duas pequenas asas de pano, e pezinhos bem pequenos, encolhidos ainda mais pelo fogo. Parecia uma macumba muito bizarra.
            - Será que foi a gente? – disse Lena, com medo.
            - Claro que foi a gente, né Lena. Quem mais poderia ser?
            - Não sei... – ela falou, sem querer imaginar quem ou o quê poderia ter feito aquilo.
            Eu estiquei a mão para encostar naquela forma não identificável de pano quando um grito me impediu.
            - Você tá doida Nina?! Não encoste nisso!
            - Aiii minha cabeça! Você tá doida?! Eu ainda estou de ressaca.
            Enquanto minha cabeça vibrava de dor, eu me levantei e peguei com cuidado a coisa queimada, ignorando os protestos medrosos de Lena. Ergui o objeto a altura dos olhos e tentei adivinhar o que era.
            - Alguma idéia?
            - Não mesmo. – disse Lena, meio emburrada. – Acho que devemos jogar esse treco fora.
            - Ah é? E o quê, simplesmente esquecer que esse negócio veio parar no meu quarto?
            - Quem se importa? Deve ter sido só uma bobagem de duas bêbadas.
            - Não sei não...
            Percebi que depois das asinhas, havia algo como uma cabeça, com o que deveria ter sido um cabelo enrolado e... o que era aquilo na outra mão...?
            Uma flecha, em forma de um... coração, preto de fuligem.
            - Isso tá parecendo o...
            Na mesma hora, um daqueles carros irritantes de supermercado passou na rua, gritando nos altos falantes: Não perca! Super promoção do dia dos namorados! Tudo com até 30% de desconto!!
            Lena me encarou. Seus olhos estavam arregalados.
            - Dia dos namorados? – dissemos juntas.
            Então tudo voltou: o letreiro, a idéia maluca, o mel, as flores, o boneco roubado do quarto da minha mãe, o feitiço, o...
            - Cupido. – eu disse, olhando para o pano queimado. – Esse era o Cupido.
            Minha cabeça começou a doer ainda mais.

domingo, 12 de junho de 2011

Três horas, e uma garrafa de vodka e meia depois,

Eu e Lena saíamos do barzinho de quinta onde tínhamos estacionado a noite inteira.
                Entre passos trôpegos e o risco de vomitar a cada dois segundos, voltávamos para casa, uma segurando na cintura da outra.
                Tínhamos bebido tanto que nem lembrávamos ao certo porque tínhamos começado com aquilo. No fundo da minha cabeça, a imagem borrada de um menino agarrando uma piranhazinha tentava entrar em foco, mas era tudo muito confuso.
                A única coisa que nós duas sabíamos – pois repetíamos a cada cinco minutos – era que...
                - Os homens não prestam. – falamos em uníssono, como se fosse o nome de uma rua ou de um lugar.
                - Não... não prestam nem um pouquinho.
                - Nem um pouquinhozi-zinho...
                Eu e Lena gargalhamos abertamente, assustando um casal que passava do nosso lado.
                - Oq... o que-que foi? Hein? O que, que vocês estão olhando? – dizia Lena, a voz embargada, dessa vez pelo álcool.
                - Eles acham que são tão superiores só porque... estão namorando... – eu completei, vendo o casal balançar a cabeça em reprovação e se afastar.
                - Eles... são uns otários.
                - Aquela menina é uma otária.
                - Porque os homens não prestam! – Lena e eu dissemos juntas, mais uma vez.
                Continuamos andando – ou melhor, tropeçando – por um tempo, eu agradecendo pelos meus pais estarem viajando, e não sabendo como Lena disfarçaria sua embriaguez, quando um letreiro na rua iluminou-se completamente, coraçõezinhos vermelhos e cor-de-rosa pulsando vivamente.
                Estava escrito, em letras cursivas: Faltam apenas algumas horas para o Dia dos Namorados! Comemore com seu amor e compre nas Lojas Marcela!
                Talvez por estarmos tão bêbadas, ou talvez simplesmente porque ficamos em completo choque,  eu e Lena permanecemos por um bom tempo paradas em frente ao letreiro, lendo as palavras de novo e de novo, completamente abismadas.
                Por fim, depois do que pareceram horas, eu consegui dizer:
                - Dia dos... namorados?
                - Dia dos namorados?  - repetiu Lena.
                - Não... deve estar errado. Amanhã não pode ser o... pode?
                - Não, nós saberíamos. Alguém teria nos contado, nós teríamos visto antes em algum lugar. O Jú... bem, nós saberíamos.
                - Mas espera... espera aí... Que dia é hoje?
                - Eu, eu esqueci. É dia... dez, não é?
                - Não, acho que não... dia dez foi sexta, tenho certeza...
                Nossa cabeça mergulhada em vodka estava confusa demais para assimilarmos qualquer coisa direito. Por fim, Lena pegou seu celular e olhou no calendário dele.
                Ela simplesmente abriu a boca, sem falar nada.
                - Ah, não, não não não! – falei. –Não pode ser verdade, não pode...
                - Mas é... – disse Lena, baixinho.
                Tomei o celular da mão dela, e olhei para a data. Dia onze... de junho... de 2011.
                O dia dos namorados era amanhã.
                - Puta que pariu!! – as duas disseram ao mesmo tempo.

Meia hora mais tarde, me sentindo bem mais sã, graças à descarga completamente humilhante de choque que acabara de receber...
                - Não sei porque estamos fazendo isso. – falou Lena, deitada na minha cama, com os olhos fechados.
                - Porque ou é isso ou é pular da janela. E meu prédio tem dezesseis andares.
                - Ah, saquei.
                Lena, não sei como, conseguiu disfarçar a voz e dizer de modo levemente convincente aos pais que dormiria na minha casa. Como nós dormíamos uma na casa da outra o tempo inteiro, Lena saiu ilesa.
                - Mas quem garante que isso vai funcionar? A janela pelo menos é uma certeza absoluta. – minha amiga virou-se lentamente e olhou para mim, que estava agachada sobre o tapete cor-de-rosa felpudo do meu quarto.
                - Porque eu já vi acontecendo. Minha prima de Barão fez e deu certo, e a Caroline também.
                - Que Caroline?
                - Aquela do terceiro ano, com quem você não conversa.
                - Ah, sei. E você confia no que essas duas dizem?
                Ergui os olhos para Lena e apontei para a tela do meu computador.
                Suspirando de preguiça, ela levantou bem devagar e sentou na cadeira em frente ao monitor. Pude ver sua reação surpresa de onde estava.
                Havia duas fotos, uma da minha prima e outra da Caroline. Ambas com dois lindos garotos do lado, aparentando igualmente estarem felizes e completamente apaixonados.
                - E isso aconteceu...?
                - Depois que elas fizeram à simpatia, sim.
                Lena ficou do meu lado, olhando os ingredientes com receio.
                - Não é perigoso ficar mexendo com essas macumbas?
                - Aah, deixa de ser medrosa. É só uma simpatiazinha.
                - Não sei não... já li que essas coisas podem tirar o livre arbítrio dos outros, que isso é magia negra.
                - Nós não estaremos tirando o livre arbítrio de ninguém. Só vamos pedir ao universo que nos traga amor.
                - Ao Cupido, você quer dizer.
                - É, é, ao Cupido.
                Joguei pétalas de amor-perfeito dentro de uma vasilha com água fervendo, e derramei uma boa quantidade de mel dentro. Depois, coloquei canela e  um pequenino quartzo rosa, que retirei de um brinco meu.
                Aquela era uma simpatia para trazer amor, que eu tinha visto num site de uma tal de Madame Dite, e que minha prima e minha amiga haviam usado. Menos de uma semana após fazer o feitiço, elas apareceram com dois caras maravilhosos e completamente caidinhos por ela. Quando me contaram a história pela primeira vez eu achei tudo muito bizarro e meio patético, afinal, se aquela macumba tinha dado mesmo certo, aquele amor não era verdadeiro, era fabricado, o que meio que tirava a graça de tudo.
                Porém, devido a todos os eventos absurdamente humilhantes e degradantes que eu e minha amiga haviam sido submetidas nesse terrível dia – e pelo desesperante dia dos namorados que se seguiria – eu mudei completamente de opinião  e resolvi que patético mesmo era a cena que existiria se eu e Lena não fizéssemos aquele feitiço: duas garotas sentadas numa lanchonete da Savassi se entupindo de chocolate quente até ele sair pelas espinhas que dariam em seus rostos, completamente sozinhas e com um transatlântico interestadual de relacionamentos amorosos completamente fodidos.
                Eu iria fazer aquela simpatia.
                - Me dê uma mecha do seu cabelo.
                - O quê?! – disse Lena, se afastando vários passos.
                - Uma mecha do seu cabelo. Anda logo Lena, daqui a pouco vai dar meia-noite.
                - E daí?
                - E daí, que esse feitiço funciona melhor se for feito exatamente a meia-noite, e de acordo com a Madame Dite, se for numa meia noite do Dia dos Namorados então... é perfeito!
                Lena olhou para a mistura que eu preparava meio assustada. Eu revirei os olhos e disse, sem dó nem piedade: - Ok, então, fique você sem a ajuda do Cupido. Quem sabe outro Júlio não apar...
                Menos de um segundo depois, uma cumprida mecha de cabelo ruivo parava em minhas mãos.
                - Boa menina.
                Cortei uma mecha também do meu cabelo e coloquei ambas na mistura, tendo o cuidado para que elas não se cruzassem – eu não queria acabar apaixonada pela minha melhor amiga.
                Por fim, eu peguei a imagem de um gorducho cupido, com bochechas fofas e um arco e flecha em forma de coração e chamei Lena para o meu lado.
                - Segure o cupido e repita as palavras que eu disser, ok? Mas não gagueje nem se atrapalhe.
                - Tá bom, tá bom.
                - Ok, então. – respirei profundamente e pensei um pouco no que estávamos fazendo.
                E se desse certo? Quer dizer, e se aquele negócio maluco realmente desse certo?
                E se eu mergulhasse esse cupido na água quente, dissesse umas palavras, e amanhã de manhã a campainha soasse e um garoto perfeito aparecesse na minha porta? Será que era pedir demais? Será que era muito querer que, uma só vez, só uma vez, eu realmente conseguisse gostar de um menino bacana, e que ele gostasse igualmente de mim também?
                Será que era muito querer amar?
                - Mergulho meus desejos na água, mergulho minha vontade no mel, e coloco minha força no quartzo. Misturo minha força com a força dos elementos, enquanto sua força se mistura ao meu poder.
Eu e Lena erguemos o cupido acima de nossas cabeças.
- Eu chamo a magia do amor, eu chamo a magia do Cupido. Senhor dos amantes e namorados, esposo de Vênus e parceiro de Afrodite. Chamo por ti, senhor dos destinos, que sua flecha seja minha flecha, que sua mira seja o meu coração. Misture seu poder ao meu poder, e me ajude a encontrar uma paixão!
Mergulhamos o cupido dentro da mistura.
Não sei se foi a bebida ou a emoção do momento, mas eu posso jurar que senti, no momento em que coloquei o cupido dentro da água com mel e flores, um leve formigamento começar das minhas mãos e se iluminar como um raio até o fundo do meu coração.
Talvez tenha sido imaginação, mas foi o que senti.

Duas horas depois, no Café do Z:

                - Homem não presta. – dizia Lena. – Não presta, ponto final.
                - Não esqueça que era uma menina que estava com ele. – eu disse, depois de fungar um pouco.
                - É claro que não. Mas aquela ali não é nem uma menina. Temos outro nome para aquele tipo. Você viu o tamanho daquele decote?
                Ah, eu tinha visto. Eu tinha visto, depois de meia hora zanzando pelas ruas da Savassi, meu ficante e aquela “menina” se agarrando escandalosamente na porta de um McDonald’s, como se nada demais estivesse acontecendo. Eu tinha visto muito bem a mão dele dançando como uma cobra pelo corpo daquela men... ok, daquela vadia. E não pude deixar de notar a cara óbvia de prazer que nunca saía do rosto daquele idiota.
                Eu tinha visto tudo. Até o que não queria ver.
                - Somos duas fodidas. – eu disse, depois de virar meu copo de chocolate quente com cobertura extra – usado apenas em momentos de crise.
                - E bota fodidas nisso. – Lena fez a mesma coisa. – Dá para acreditar? No mesmo dia em que o meu namorado idiota termina comigo, o seu namorado idiota trai você. Nós somos mais que fodidas amiga. Nós somos completamente, absolutamente, sem nenhuma sombra de dúvida fodidas.
                - É, é por aí.
                - Zeca, mais dois quentes com extra! – gritei.
                - E não é só que somos fodidas. – Lena continuou. – Nós somos fodidas várias vezes. Quer dizer, se ao menos essa fosse a primeira vez que isso estivesse acontecendo conosco até ia. Mas não é. Não é mesmo.
                Eu concordava com a cabeça.
                - Se lembra do Victor? – disse.
                - Ah, claro que lembro. O cara do resfriado não é?
                - É. Toda vez que nós íamos sair, ele estava gripado. Acho que nunca tomei tanto Naldecon como naquelas semanas.
                - Ih, amiga, e o Carlos? Lembra, nós ficávamos o dia inteiro esperando que ele saísse do cursinho...
                - ... e depois íamos comer no McDonald’s, e tudo por nossa conta.
                - É, e só porque ele tinha aqueles olhos azuis perfeitos... se ao menos ele tivesse ficado com uma de nós...
                - Mas não, ele só falava sobre aquelas bandas esquisitas e sobre Will Smith.
                - É, o que era aquela fixação dele pelo Will Smith?
                Eu ri um pouco.
                - Não sei. Ei, você se lembra do Gabriel?
                - Hmm... não.
                - Eu lembro. Esse beijava bem. Uma pena que mudou de cidade...
                - Ah, e por falar em mudar de cidade...
                - Cala a boca Lena.
                Lena riu. – Nem pensar. Vamos ver, por onde começo... ah! O Vinicius, de Sabará.
                Eu ergui a sobrancelha e comecei a tomar meu chocolate quente. Nem morta que ia entrar na de Lena.
                - Ah, vamos lá, amiga. Ó, eu lembro também do Téo. Ele era de Sabará também não era?
                Continuei calada.
                - Os dois tinham a péssima mania de falar de time. Nada contra um cara gostar de futebol, claro, mas comentar os gols do Cruzeiro no meio de uma ficada...
                - Não sei do que você está falando. E o Pedro de Diamantina? Ele literalmente te trocou por futebol.
                - Então agora você resolveu falar? – Lena jogou um canudinho em mim. – E nem vem com essa. Ele me trocou por vôlei.
                - Só piorou.
                - Tá bom então, senhora “Jane”.
                Lena gargalhou alto, e, mesmo não querendo, eu comecei a rir também.
                - Nunca mais vi o Tarzan com os mesmos olhos. – Continuamos rindo enquanto me lembrava do cara de Lavras que, depois de uma festa,  ficou tão bêbado que começou a gritar feito um macaco, no meio da rua, e a me chamar de Jane.
                - Quem mais...
                - E o Hepatite, de Barretos?
                - Ah, ele até que era legal.
                - Legal? Que tal maluco? O cara só usava amarelo. Até o cadarço do tênis era amarelo.
                - Tudo bem, tudo bem. Mas ninguém é tão maluco que nem o PJ.
                PJ, de Patos de Minas. Era gatíssimo, beijava super bem, era até simpático... mas tinha TOC. Sabe, aquele transtorno onde as pessoas tem manias absurdas? Eu não teria nenhum problema com isso... se sua mania não fosse a de gritar “Terra a vista!” sempre que alguém falava a palavra mar.
                Ah, para quem está perdido com todo o lance das cidades e tudo mais eu explico: eu e Lena temos parentes em praticamente toda Minas Gerais. Sério mesmo. Pode visitar qualquer cidadezinha de interior, qualquer mesmo, e perguntar se tem alguém lá de sobrenome Nunes ou Ferreira que com toda certeza a resposta será sim.
                De modo que sempre estamos viajando para esses lugares. E, como temos muitos primos e primas da nossa idade, acabamos fazendo amizade com a galera toda, de todas as cidades que passamos.
                O que significa que nossa trilha amorosa chega a mais lugares que o Rio São Francisco.
                Enfim, rimos mais um pouco lembrando de outros caras, e de mais cidades, até que nós duas gritamos, com uma bela dose de raiva na voz:
                - Os gêmeos!
                - Graças a Deus, nunca mais vimos eles!
                - Isso porque nunca mais voltamos pra Governador. Ainda não acredito que eles conseguiram nos enganar...
                Os gêmeos eram dois garotos que conhecemos, Maurício e Mauro, que – talvez por puro fetiche, ou porque era estranhamente divertido – nós duas começamos a ficar ao mesmo tempo. Em um feriadão, saíamos os quatro juntos, indo para rodeios ou festinhas. O que nós não desconfiamos, em nenhum dos dias que ficamos juntos, era que eles se revezavam a cada meia hora entre eu e Lena.
                Só fomos descobrir isso graças a um comentário do Orkut, um mês depois.
                - Aqueles dois eram canalhas nojentos.
                - É, talvez eles, o Léo e o Júlio se conheçam.
                A menção do nome de nossos respectivos ex-ficantes apagou o ris o dos nossos rostos.
                - Nem acredito que estamos de novo nessa, amiga. – falei, segurando a mão de Lena.
                - Eu sei... porque as coisas nunca dão certo pra gente?
                Ficamos ali, olhando uma para outra, sem saber a resposta. Por mais engraçado que fosse lembrar de todos os caras com quem ficamos e namoramos, no fundo, no fundo não era nada legal. Só mostrava claramente que, depois de tantos relacionamentos, nunca nenhuma de nós conseguira ficar com um cara por mais de três meses.
                Comecei a sentir meus olhos lacrimejarem.
                -Zeca, mais um...
                - Não! – gritou Lena, me assustando. – Já chega de chocolate. O que a gente precisa não é de doce.
                Lena pegou um bolo de notas da carteira e jogou na mesa, me olhando em seguida desafiadoramente.
                Eu concordei com a cabeça, sentindo meu coração começar a bater mais rápido.
                - Vodka. – dissemos juntas.

Começou ontem, com um telefonema

Uma conhecida voz, engasgada e melequenta, acompanhada por sonoras fungadas no nariz chegou da outra linha. Levantei da cama onde estava deitada e torci para que não fosse Lena, para que fosse qualquer pessoa menos a minha amiga.
                - Nina? É... é... a Lena.
                Droga. Comecei a andar pelo meu quarto e catei uma calça jeans que estava no chão, vestindo ela e uma blusa qualquer em seguida.
- Oi amiga. O que houve? – perguntei, enquanto calçava minhas sandálias.
- Você não vai acreditar...
Estava penteando o cabelo quando comecei a desejar, de todo o meu coração, que minha amiga não dissesse as quatro palavrinhas que eu sabia que ela estava prestes a dizer... que eu estivesse errada e estava trocando de roupa por nada...
                - O Júlio terminou comigo!!!
                Parei no meio do quarto e suspirei profundamente. Claro que tinha terminado. De novo.
                Enquanto pegava minha bolsa, disse: - Te encontro no Z em quinze minutos. – e desliguei.

Quinze minutos depois, no Café do Z:
                - Você tem certeza que terminaram?
                - Co-como assim se eu tenho certeza?? É claro que eu tenho certeza Nina!!
                - Eu sei, eu sei... mas às vezes não é nada tão definitivo assim.
                - Não, é sim. Eu sei. Eu sinto.
                - Ok, quais foram as exatas palavras dele?
                Lena fungou mais um pouco e pegou o celular, abrindo nas mensagens e entregando para mim. Estava escrito: Temos que terminar tudo, pra sempre dessa vez. Sinto muito. Beijos, pra sempre seu.
                Ai!
                - Nossa que idiota. Beba mais do seu chocolate – o Café do Z fazia o melhor chocolate quente de Belo Horizonte, o único motivo pelo qual eu e Lena íamos ali, sempre que tínhamos qualquer problema amoroso.
                O que sim, significa que todos os garçons sabem nossos nomes, e que temos nossa própria conta.
                - Eu ainda não acredito nisso tudo. – ela disse, depois de beber por um tempo. – Quer dizer, eu nem sei porque exatamente terminamos.
                - Quer dizer que vocês não brigaram nem nada assim?
                - Não mesmo. Nós estávamos até bem, tudo bem que ontem tivemos uma pequena discussão a respeito daquela mania idiota dele de não me responder nada direito no MSN, mas fora isso... Ah não, você acha que ele terminou comigo por causa disso???
                - Ele terminou com você porque é um idiota. Quer dizer que tipo de mensagem é essa: “temos que terminar tudo, pra sempre” e depois, “beijos, pra sempre seu”. Como ele vai ser pra sempre seu se vocês vão terminar pra sempre? Tipo será que dá pra ser mais canalha do que isso?
                - Ah, dá. Amiga, ele terminou comigo por mensagem.
                - Ai, é mesmo. Tome, mais chocolate pra você.
                Entreguei meu chocolate quente pra ela – porque o copo de Lena já tinha acabado – e fiquei pensando se eles realmente haviam terminado tudo. Por mais horrível que aquela mensagem parecesse, eu não podia deixar de me sentir meio cética, considerando que aquela era a sexta vez que eles, abre aspas, terminavam tudo, fecha aspas.
                Tudo bem que nenhuma das vezes – embora todas elas tivessem sido acompanhadas pela voz mucosa de Lena – foram tão trágicas assim, o lance todo do pra sempre era bem tenso. Mas ainda assim... É difícil confiar naqueles dois quando se já pagou tantos chocolates quentes como eu paguei nesses dias.
                Mas eu preferi ficar calada. Como o manual da melhor amiga diz: quando se trata de fim de namoro, o melhor é usar os três Cs: consolar, concordar e cooperar. Ou seja, cale a boca.
                Assim, ficamos sentadas, pedindo chocolate atrás de chocolate por um bom tempo. Deixei Lena chorar, falar que amava Júlio, chorar, falar que odiava Júlio, chorar, falar que eles ainda voltariam – não pude deixar de erguer as sobrancelhas nessa hora – chorar mais, falar que não queria nem ouvir falar dele de novo.
                Então, depois de alguns minutos de mais choro, seguidos por uma bem desenvolvida fundação do clube Nós Odiamos o Júlio (pra sempre), as coisas melhoraram um pouco. Lena até conseguiu rir, uma hora.
                Por fim, passamos a falar de outras coisas. Fofocamos um pouco sobre o pessoal da escola, reclamamos do Mont Everest de dever que tínhamos para segunda, e falamos um pouquinho sobre mim.
                - Então, amiga, como vai o Léo? – Lena perguntou, com o tom de voz suspeitamente embargado.
                Olhei para ela, em dúvida. A última coisa que queria era vê-la chorando porque eu estava contando do meu relacionamento amoroso – se é que podemos chamar disso.
                - Ai, relaxa Nina. Eu estou de boa. Agora me conta.
                - Bem, estamos normais. Sei lá. Ele anda meio sumido... não sei porque.
                - Ontem vocês saíram?
                - Não, ele disse que estava ocupado com umas coisas em casa.
                - É mesmo? – Lena me olhou.
                - Não me olhe desse jeito. Tá tudo ótimo. Nós conversamos horas ontem no telefone, acho até que vamos nos encontrar hoje à noite. Ele disse que agora de tarde tinha um compro...
                Enquanto eu falava, observava a rua e as pessoas que passavam pela vitrine do Z. De repente, andando rapidamente pela calçada estava, justamente, o Léo.
                E mais uma pessoa.
                E mais uma menina.
                - Tinha um...? – disse Lena, mas eu estava chocada demais.
                Ela acompanhou meu olhar, e deu um gritinho de surpresa.
                - Amiga, aquele é o...
                - É.
                - E aquela é uma...
                - É. – engoli em seco.
                - Vamos atrás deles!
                - O quê? Não!
                - Como assim, não?! Vamos sim, claro que vamos. Seu namorado está andando por aí com uma menina.
                - Ele não é meu namorado. E ela pode ser apenas uma amiga... ou uma prima. Ou a irmã dele!
                - O Léo não tem irmã Nina. E um garoto acabou de terminar comigo via mensagem, então nem me venha com esse discurso de que ele está com uma amiga!
                Lena levantou da cadeira, e pegou a bolsa dela e a minha, me puxando para fora da lanchonete.
                - Lena, não, eu não quero ir...
                - Quer sim. Vamos logo. Zeca põe na conta! – gritou minha amiga, enquanto corríamos porta afora.